28 junho, 2005
Brasil
Pátria de emigração,
É num poema que te posso ter...
A terra - possessiva inspiração;
E os rios - como versos a correr.
Achada na longínqua meninice,
Perdida na perdida juventude,
Guardei-te como pude
Onde podia:
Na doce quietude
Da força represada da poesia.
E assim consigo ver-te
Como te sinto:
Na doirada moldura da lembrança,
O retrato da pura imensidade
A que dei a possível semelhança
Com palavras e rimas e saudade.
Miguel Torga
25 junho, 2005
Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
Mia Couto
Sal da Língua
24 junho, 2005
Não posso adiar o amor para outro século
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
não posso adiar o coração
António Ramos Rosa (1974)
20 junho, 2005
When you say nothing at all
A palavra pede companhia, o silêncio precisa de solidão
A palavra quer conquistar outros, o silêncio ajuda a conquistar a si mesmo
A palavra faz amigos e inimigos, o silêncio trata a todos como amigos
A palavra exige respeito, o silêncio comanda
A palavra é auto-expressão, o silêncio é experiência própria
A palavra pode ser impressionante, o silêncio é estático
A palavra lamenta, o silêncio nunca
A palavra tem limitações, o silêncio é ilimitado
A palavra requer esforço, o silêncio, muito mais
19 junho, 2005
E por vezes...
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a vida nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
David Mourão-Ferreira
(1927-1996)
17 junho, 2005
Balada do menino triste
NA DISTÂNCIA,
AQUELA DOCE INFÂNCIA
DE OUTROS TEMPOS.
TEMPOS EM QUE HAVIA
PARAGENS E SILÊNCIOS...
ENCONTROS COM O SONHO E A POESIA...
HOJE, QUE PENA ME FAZEIS,
MENINOS TRISTES
DA ÉPOCA LUNAR!
MENINOS-REIS
QUE TUDO TENDES
E TUDO VISTES
MAS NÃO SABEIS O QUE É BRINCAR!
QUE PENA TENHO
DE TODOS VÓS,
MENINOS TRISTES,
TÃO SABIOS E TÃO SÓS!
EU, AINDA SOU DOS DIAS CALMOS
EM QUE IA OUVIR,
COM OS MEUS PAIS,
O CORETO, NA AVENIDA.
EM QUE, MENINA DE DOIS PALMOS,
FANTASIAVA COUSAS TAIS,
QUE NUNCA ERA BANAL
A MINHA VIDA.
E VÓS, MENINOS DE HOJE,
QUE FANTASIAS TENDES?
QUE FIZESTES DO VOSSO FEITIÇO,
QUE VOS DARIA REINOS DE ANÕES E LOBISOMENS?
JÁ NÃO ACREDITAIS
EM FADAS E DUENDES
E - BEM PIOR QUE ISSO -
NEM JÁ ACREDITAIS NOS PRÓPRIOS HOMENS!
EU, AINDA SOU DOS DIAS BONS
EM QUE UM NADA NOS FAZIA FELIZES,
A NÓS, CRIANÇAS,
PARA AS QUAIS TUDO ERA NOVO: - PAISAGENS E SONS,
PÁSSAROS, FLORES E MATIZES!
VÓS, MENINOS DE AGORA,
POBRES SACIADOS,
QUE SABEIS DA NOVIDADE?
AINDA MAL VISTES NASCER A AURORA
E JÁ ESTAIS SATURADOS
- SEM TER SEQUER CONHECIDO A SAUDADE!
POR ISSO TENHO PENA
DE TODOS VÓS,
MENINOS TRISTES,
TÃO SÁBIOS E TÃO SÓS!
SÁBIOS
PORQUE TENDES A CIÊNCIA INATA
DESTA ERA ESPACIAL.
MAS A CIÊNCIA MATA
QUANDO MATA O SORRISO
E ESPALHA O MAL.
QUANDO TRAZ CONSIGO
A GUERRA, A MORTE E O NERVOSISMO
E SÓ DEIXA À CRIANÇA,
COMO HERANÇA,
SEMENTES DE EGOÍSMO.
EIS PORQUE
TANTA PENA ME FAZEIS,
MENINOS TRISTES
DA ÉPOCA LUNAR
MENINOS - REIS
QUE TUDO TENDES
E TUDO VISTES,
MAS NAO SABEIS O QUE É BRINCAR!
Cacilda Celso
16 junho, 2005
15 junho, 2005
Uma noite para comemorar
Esta é só uma noite para partilhar
Qualquer coisa que ainda podemos guardar cá dentro
Um lugar a salvo
Para onde correr
Quando nada bate certo
E se fica a céu aberto
Sem saber o que fazer...
Esta é uma noite para comemorar
Qualquer coisa que ainda podemos salvar do tempo
Um lugar para nós
Onde demorar
Quando nada faz sentido
E se fica mais perdido
E se anseia pelo abraço de um amigo...
Esta é só uma noite para me vingar
Do que a vida foi fazendo sem nos avisar
Foi-se acumulando em fotografias
Em distâncias e saudades
Numa dor que nunca acaba
E faz transbordar os dias...
Esta é uma noite para me lembrar
Que há qualquer coisa infinita como um firmamento
Um sorriso, um abraço
Que transcende o tempo
E ter medo como dantes
De acordar a meio da noite
A precisar de um regaço.
Mafalda Veiga
Homenagem póstuma a um poeta
Morreu um Poeta, já é herói.
Em vida, chamaram-lhe:
- Marginal,
Boémio, homossexual,
Preverso, pagão,
Violador e até ladrão;
Morreu um Poeta, já é herói.
Em vida, chamaram-lhe:
- Vagabundo,
Escória, imundo,
Louco, ignorante,
Arrojado e até pedante.
Morreu um Poeta, já é herói.
Em vida, chamaram-lhe:
- Doença
E tudo o que a sentença
Da sociedade intelectual
Pode corromper em tom formal.
Morreu um Poeta,
Jaz herói.
Como é habitual,
Ergueu-se um pedestal,
Fizeram-lhe a biografia,
Um elogio, a apologia,
Um discurso, uma edição,
Levantaram-lhe a excomunhão...
Morreu um Poeta,
Já cansado de viver.
A sua morte foi:
- A homenagem, o indulto
Da miséria e o insulto
A que o votaram
por cometer o crime de escrever.
Raúl Duarte